Às vésperas do primeiro aniversário do golpe militar de 1964, uma coluna de 23 homens desafiou o regime percorrendo três Estados no Sul do Brasil. Renegada pela história, a Guerrilha de Três Passos completa 50 anos sem o reconhecimento como primeiro movimento armado para restaurar a democracia no País
JOSÉ DE SOUZA, de Três Passos, Montevidéu e Porto Alegre ANDRÉIA LAGO, de São Paulo e Rio de Janeiro RICARDO GOZZI, de Curitiba
Fotos de CACALOS GARRASTAZU
Ilustrações de RICA RAMOS
Oculto por quase 50 anos, o diário até então inédito do coronel que liderou a primeira guerrilha contra a ditadura no Brasil, em 1965, mostra que o objetivo do Movimento Revolucionário Três Passos - apoiado pelo ex-governador Leonel Brizola no exílio e depois renegado por ele - era ocupar quartéis no interior do Rio Grande do Sul para forçar uma insurreição armada e popular contra o regime.
De acordo com o documento, escrito pelo coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório no exílio, entre México e Argélia, em 1968-69, o grupo que marchou pela região noroeste do Rio Grande do Sul em março de 1965 tinha como missão tomar o 7º Grupo de Canhões de Ijuí (atual 27º Grupo de Artilharia de Campanha). O objetivo era, a partir dali, espalhar sublevações por quartéis de Santa Maria, Pelotas, Cruz Alta e Santo Angelo, entre outras cidades. No 7º GAC, dois sargentos legalistas dariam apoio à ocupação e ao confisco de armas.
Acervo pessoal/Família Osório
Filho de um oficial da Marinha, Jefferson Cardim Osório nasceu no Rio de Janeiro em 1912
Acervo pessoal/Família Osório
Acervo pessoal/Família Osório
Acervo pessoal/Família Osório
Cacalos Garrastazu
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A revelação contraria as versões oficiais, que classificam a Guerrilha de Três Passos como uma ação realizada sem planejamento, sem apoio das lideranças políticas no exílio e fruto do delírio de um militar que não tinha a confiança dos principais opositores do regime. Osório mostra, nas suas memórias, que havia um conjunto de ações prioritárias no planejamento do grupo, incluindo um minucioso mapeamento da região, senhas e mensagens secretas e até um plano B - posto em prática com o fracasso da missão, logo na sua primeira parte.
A etapa inicial do plano foi cumprida com relativo êxito: em Três Passos, a uma hora de marcha de Ijuí, o grupo de 23 combatentes reunido por Osório invadiu a rádio Difusora na madrugada de 26 de março e transmitiu uma "Proclamação ao Povo Gaúcho". O manifesto, elaborado pelo coronel, era a senha para que os integrantes das forças de oposição ao governo militar pegassem em armas antes do golpe completar um ano, poucos dias depois.
Planos controversos
No diário, o coronel não deixa dúvidas sobre os objetivos do movimento, sobre as razões do fracasso e sobre a até hoje controversa participação de Brizola no episódio. Osório narra que a segunda fase do plano de insurreição não se concretizou pela falta dos efetivos prometidos pelos organizadores - o comandante esperava ter 60 homens para marchar sobre Ijuí, incluindo pelo menos 12 sargentos. E revela que a estratégia do "esquema do Brizola" repetiria o movimento dos tenentes de 1922. "Até aqui, o planejamento estava dentro do esquema do Brizola, um movimento convencional como a tomada dos 18 do forte de Copacabana em 1922 (...) que visava esperar adesões dos quartéis".
A insurreição fracassada, que completa meio século neste mês, acabou sendo relegada ao esquecimento, tanto pela historiografia oficial quanto pelos movimentos de memória do período de exceção. A Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, dedicou cinco páginas ao movimento no seu relatório final (Parte IV - Dinâmica das Graves Violações dos Direitos Humanos: Casos Emblemáticos, páginas 596 a 601), sem oferecer uma análise conjuntural sobre o episódio. Nos compêndios de história, tampouco o caso é apresentado com destaque - restando a Osório a pecha de falastrão, megalomaníaco e irresponsável.
"É como se houvesse caído uma maldição sobre o tema, que não dá Ibope e cujas fontes primárias, em sua maioria, seguem secretas", afirma a professora Daniela Cademartori, autora de um dos raros trabalhos acadêmicos sobre a guerrilha. Ela avalia o levante liderado por Osório como uma parte muito importante da história recente do país. "Até porque determinou todo o comportamento posterior da ditadura", diz a acadêmica.
"É como se houvesse caído uma maldição sobre o tema, que não dá Ibope e cujas fontes primárias, em sua maioria, seguem secretas"
A adesão que não aconteceu obrigou os comandantes do Movimento Revolucionário Três Passos a optarem pelo plano B. No diário, o coronel relata que, a partir do momento em que as rádios noticiavam a tomada da cidade gaúcha sem qualquer levante nos quartéis, ficou claro que restava à coluna se deslocar em formato de guerrilha até o sul do Mato Grosso, "onde vários fazendeiros nos dariam apoio logístico necessário (...) e (havia) facilidade para aliciar homens para a luta contra a ditadura".
Reprodução/Cacalos Garrastazu
O líder da guerrilha, Jefferson Cardim Osório, escreveu seu diário no exílio entre 1968 e 1969
Reprodução/Cacalos Garrastazu
Reprodução/Cacalos Garrastazu
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Diário de memórias
O documento, que integra um conjunto de relatos pessoais de Jefferson sobre sua participação no combate à ditadura no Brasil, relata em 41 páginas toda a Guerrilha de Três Passos, da partida do pequeno grupo desde Rivera (Uruguai) na manhã de 19 de março de 1965 até a capitulação, nove dias depois, na cidade paranaense de Leônidas Marques. O único combate travado entre a coluna e as tropas do Exército deslocadas para conter o levante, ocorrido na cidade paranaense na manhã do dia 27 de março, resultou na morte do sargento do Exército Carlos Argemiro de Camargo - a autoria dos disparos até hoje continua incerta.
O noroeste gaúcho foi escolhido para iniciar a insurreição porque o PTB tinha uma grande base de apoio na região, onde proliferavam os Grupos de Onze - organizações cívicas organizadas a partir de 1963 pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Além disso, nos destacamentos militares e quartéis da Brigada Militar havia oficiais nacionalistas apenas à espera de um comando para se sublevarem contra os golpistas.
Também contou para a escolha a questão logística: região de fronteira, Três Passos fica situada a pouco mais de 25 quilômetros da Argentina, tinha - e ainda tem - densas matas nativas e era servida por boas pistas de pouso, dos dois lados da fronteira, onde o grupo sonhava em realizar desembarques de tropas e equipamentos militares.
O percurso da guerrilha
O plano foi articulado a partir de Montevidéu, onde Osório atuava como adido militar do Lloyd brasileiro indicado pelo presidente João Goulart. A resistência aproximou-o do sargento Alberi Vieira dos Santos, conexão entre Brizola e os civis do PTB no Rio Grande do Sul. O sargento Firmo Chaves, também exilado na capital uruguaia, juntou-se ao grupo para pôr o plano em prática.
Osório partiu de Rivera acompanhado de Alberi e do militante brizolista Alcindor Ayres - que ficou em São Sepé para organizar a adesão de pessoal e combinar, com um delegado de Polícia simpático à resistência, a sabotagem das vias férreas da região para dificultar a resposta do regime. Firmo partiu rumo a Porto Alegre em busca de adesões ao plano.
Arquivo pessoal/Família Firmo
Firmo Chaves, 25 anos, buscou adesões ao plano em Porto Alegre
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Acervo pessoal/Família Dorneles
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Osório e Alberi chegaram à localidade de Campo Novo, onde se registrou uma grande adesão ao Movimento da Legalidade de 1961, às 13h do dia 20 de março, depois de pernoitarem em Santa Maria e de passarem por Cruz Alta, Ijuí e Catuípe, onde dormiram algumas horas. Em Campo Novo, os três receberam reforços e ficaram "estacionados" durante seis dias, "fazendo treinamentos de marcha num terreno acidentado com aclives e declives por entre mato fechado até as margens do rio Turvo, onde fazíamos treinamento de tiro".
O diário narra, sem subterfúgios, a pobreza de recursos com que os insurgentes pretendiam desafiar a ditadura. Alcyndor, por exemplo, deveria trazer "pelo menos 20 homens" de São Sepé; foi ao encontro do grupo com apenas três combatentes. Firmo, por sua vez, que partira de Montevidéu para Porto Alegre, se comprometera a incorporar 10 sargentos; não levou nenhum.
"Eu tinha esperança de levar uns 15 (combatentes), mas eles não quiseram ir porque eram ligados ao Brizola, que não tinha falado nada com eles", conta o advogado Firmo Chaves, 75 anos, ex-sargento do Exército que se engajou no plano de Osório com apenas 25 anos. Segundo Chaves, o coronel "ficou pasmo" quando ele relatou que os demais guerrilheiros não quiseram participar da ação.
"Eu tinha esperança de levar uns 15 combatentes, mas eles não quiseram ir porque eram ligados ao Brizola, que não tinha falado nada com eles"
Chaves havia partido para o exílio no Uruguai apenas dois meses após o golpe militar, já sob investigação por subversão. Em Montevidéu, conta o advogado, foi apresentado ao ex-presidente João Goulart e a Brizola pelo então tenente do Exército José Wilson da Silva, assessor militar do ex-governador gaúcho. "Quando conheci o coronel Jefferson, ele me disse que não aguentava mais ficar em Montevidéu e que queria fazer um movimento. Respondi que ele podia contar comigo, mas saí de lá sem o conhecimento do Brizola, que não sabia desse plano do Jefferson", assegura.
Mostrando as marcas de tortura no corpo, o ex-sargento diz que os militares que o torturaram queriam que ele confessasse que o levante tinha sido feito sob ordem de Jango, Brizola e Darcy Ribeiro. "Eu, pelo menos, não fui para lá cumprindo ordem deles, fui por ordem da minha consciência e obedecendo ao convite do coronel Jefferson", afirma.
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Os militares que torturaram Firmo queriam que ele confessasse que o levante tinha sido feito sob ordem de Jango, Brizola e Darcy Ribeiro
Nota de um cruzeiro
A coluna, com 15 guerrilheiros, partiu do sítio de Silvano Soares dos Santos, irmão de Alberi, para a tomada de Três Passos por volta das 20h do dia 25 de março. Após uma hora de caminhada, subiram num velho caminhão Ford 1939 do sítio do revolucionário Euzébio Dorneles. Osório conta no seu diário que o Ford "só tinha um farol e (estava) com a bateria descarregada". Para fazer funcionar o motor de arranque, só empurrando. No caminho para a cidade, mais oito homens arregimentados por Valdetar Dorneles - filho de Euzébio - se juntaram ao grupo, completando 23 combatentes.
No caminho, o grupo cortou os fios telegráficos e telefônicos e ingressou na zona urbana da cidade à meia-noite em ponto, segundo o diário, indo diretamente para o Destacamento Policial da Brigada Militar - a chamada Prioridade 1. "Eu desci do caminhão fardado de quepe, gabardine e coturno, empunhando a pistola Colt 45; o Alberi (estava) de traje civil, com o mosquetão Mauser (de fabricação alemã) de 7mm em bandoleira e empunhando o revólver SW (Smith & Wesson) 38; e o sargento Firmo (Chaves) (estava) com seu revólver também SW de calibre 38", narra Osório.
"Nem eu nem meu pai estivemos alguma vez com o Brizola, mas os mensageiros falavam em nome dele. O Brizola é que estava no comando, disso não resta dúvida"
O advogado Valdetar, 83 anos, diz que conheceu Alberi Vieira dos Santos cerca de oito meses após o golpe de 1964. "Ele apareceu aqui trazendo a metade de uma nota de um cruzeiro, senha deixada pelo (sargento) Manoel Raimundo Soares para identificar um companheiro de resistência à ditadura. Isso causou um grande espanto porque o pai dele era um radical do PSD (partido adversário do PTB e que apoiou o golpe contra Jango)", relata o ex-guerrilheiro. "Nem eu nem meu pai estivemos alguma vez com o Brizola nesse período, mas os mensageiros falavam em nome dele o tempo todo. O Brizola é que estava no comando, disso não resta dúvida", afirma.
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Por ordem de Osório, Valdetar fez o levantamento geográfico da região de Três Passos, com as distâncias de todos os pontos estratégicos
Então com 30 anos, Valdetar tinha como formação militar apenas um curso de tiro de guerra no Exército. Por ordem de Osório, fez o levantamento geográfico da região, com as distâncias de todos os pontos estratégicos que estavam no alvo do grupo - quartel, presídio, rádio, agência bancária e correio. Ninguém sabia a data da ação; a senha para o início do movimento seria transmitida desde Montevidéu para os líderes na região: "Operação Touro Preto".
"No dia 25, escutei na rádio Guaíba (de Porto Alegre): 'acabamos de captar a seguinte mensagem clandestina: operação Touro Preto imediatamente em ação'. Avisei ao Jefferson e ao Alberi e começamos a reunir os companheiros. Mesmo com poucas armas e com o contingente mínimo necessário para a ação, decidimos seguir em frente", relembra.
"Escutei na rádio Guaíba: 'operação Touro Preto imediatamente em ação'. Avisei ao Jefferson e ao Alberi e começamos a reunir os companheiros"
O movimento de resistência, por essa razão, foi marcado pela improvisação. Enquanto os líderes Jefferson, Alberi e Firmo tomavam o pequeno quartel da Brigada Militar, o motorista Silvino de Souza Fraga tentava pôr em funcionamento o velho Ford 1939, "que só deu para chegar até o aquartelamento e não se mexeu mais". Ao sargento chefe do destacamento, que chegou ao posto durante a ação, o comandante informou se tratar da execução de um plano de Brizola, que àquela altura já devia estar em Porto Alegre.
O filho de Osório, Jefferson Lopetegui de Alencar Osório, 62 anos, conta que quando seu pai entrou no Brasil para fazer contatos, todos articulados pelo ex-governador, foi informado que o serviço secreto do Exército já estava a par da operação e vinha tomando providências contrarrevolucionárias. "Então o Brizola mandou, de Montevidéu, uma contra-ordem que chegou atrasada ao meu pai. Só restava a ele ir em frente, não podia mais voltar", afirma.
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Segundo o filho de Osório, Jefferson Lopetegui, a contraordem de Brizola chegou atrasada ao coronel, que não poderia mais voltar atrás
A mensagem foi levada de Porto Alegre a Três Passos pela então militante comunista Vera Maria Idiarti, que procurou o advogado Benjamin Osório na cidade com o intuito de levá-la até os combatentes - a missão foi confirmada pelo médico Jarbas Osório, filho de Benjamin. Segundo Jefferson, quando Brizola e o pai se reencontraram, depois do processo de anistia, os dois discutiram sobre o episódio. "Meu pai ficou chateado, achando que houve traição por parte de Brizola. Mas foi uma fatalidade", diz.
Segundo a avaliação do presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH), Jair Krischke, a posição do ex-governador do Rio Grande do Sul sempre foi dúbia em relação ao episódio. Conhecido pesquisador dos movimentos de exceção no Brasil, Krischke afirma que o grupo "arranca com o apoio de Brizola, mas um apoio que não era integral". Para o dirigente, Osório empolgou um grupo pequeno e o ex-governador viu nisso uma boa oportunidade para desencadear uma reação. "Era um apoio na base do 'vamos ver no que vai dar'. Havia articulações que, na hora de acontecer, não se concretizaram. Falharam. Por mil razões, mas falharam."
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Para o advogado Jair Krischke, o apoio de Brizola à guerrilha era "na base do vamos ver no que vai dar"
Os insurgentes tomaram as armas do quartel e do posto policial, tentaram levar dinheiro da agência do Banco do Brasil, mas desistiram porque o gerente, acordado de madrugada, não tinha o par da chave dupla que abriria o cofre. Para ler o manifesto na rádio Difusora, tiveram de acordar o dono da emissora, Benno Adelar Breitenbach, porque o operador se recusou a colocar a rádio no ar.
A mulher de Benno, Zilá Breitenbach, lembra que os guerrilheiros ficaram no escritório do radialista à espera da emissora entrar no ar - rádio e residência do casal ficavam no mesmo prédio. "Foi uma surpresa. Eles nos acordaram às duas da manhã com fuzis e revólveres dizendo que estavam a serviço da revolução. Foram cordiais, alertaram que não pretendiam agredir ninguém, mas não tínhamos como saber o que podia acontecer. Logo depois que partiram, reunimos vários amigos e começamos a discutir o que fazer. Muitos pensaram em sair da cidade, abandonar tudo com receio do movimento", lembra Zilá, atualmente deputada estadual no Rio Grande do Sul.
Apesar do improviso, o grupo cruzou a fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina sem ser parado por barreiras militares. O Ford 39, fora de combate, foi substituído por um Mercedes Benz novo, modelo 1964, estacionado no posto de gasolina da cidade por irregularidades na documentação.
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Esposa do dono da Rádio Difusora de Três Passos, Zilá conta que os guerrilheiros foram cordiais e não agrediram ninguém
O caminhão, transportando Osório, Alberi e o motorista Silvino Souza Fraga na cabine e outros 20 insurgentes na carroceria, amanheceu na pequena cidade de Iporã, na fronteira com a Argentina. Durante uma parada para o café, souberam que a tomada de Três Passos estava no noticiário das rádios gaúchas. "Diziam que a operação era de grande envergadura, citando meu nome e que me achava à frente de 200, 300 e até de 400 homens bem armados. Até aqui o planejamento estava dentro do esquema do Brizola", relata Osório no diário. Pouco depois, a constatação: "Às 8 horas já dava pra sentir que não havia reação nenhuma. Agora era preciso pôr em execução o planejamento da guerrilha, como alternativa", diz o diário do coronel.
O então tenente José Wilson da Silva, outro dos personagens centrais do episódio, é categórico ao afirmar que Osório agiu "por contra própria". E vai mais longe: afirma que a ação desencadeada pelo coronel prejudicou as condições que vinham sendo criadas para um levante armado, com apoio popular, contra a ditadura a partir do Rio Grande do Sul. "Quando estávamos numa situação que parecia que ia dar, com gente daqui do Rio Grande do Sul, muitos oficiais da Brigada Militar e pessoal do Exército, foi feito aquele negócio do Jefferson. Não quero acusá-lo de nada, mas é bom que se diga que ele não conhecia ninguém. O Jefferson agiu sozinho. Quem disser o contrário não estará falando a verdade", afirma.
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O tenente José Wilson é categórico ao afirmar que Osório agiu sozinho e prejudicou a preparação de um levante armado com apoio popular
Para Wilson, a tentativa empreendida pelo coronel e seus comandados foi "uma aventura", insuflada, na verdade, por Darcy Ribeiro, que deu cerca de US$ 500 aos insurgentes. O oficial diz que ele próprio denunciou a iniciativa pessoal de Osório a Leonel Brizola na noite de 18 de março de 1965 - quando os líderes saíram de Montevidéu rumo à fronteira com o Brasil. Sobre a versão de que Brizola teria enviado uma contraordem aos líderes da Guerrilha de Três Passos tentando suspender o movimento antes do grupo iniciar a marcha, ele diz que essa foi a reação do ex-governador ao saber do movimento. "Ele disse: 'então, tu pega alguém aí e manda avisar que não saiu ordem nenhuma de Montevidéu'. Foi aí que eu peguei o mensageiro, Francisco Lage (vereador de Pelotas, exilado no Uruguai), e ele veio ao Brasil com o recado que de lá não saíra nenhuma ordem para fazer nada", relata o capitão.
20 minutos de tiroteio
Na fuga em direção ao Mato Grosso, o grupo acabou sendo interceptado por tropas deslocadas para combater o movimento revolucionário no interior do Paraná. Em Leônidas Marques, na manhã do dia 27 de março, jipes e caminhões do Exército cruzaram com os guerrilheiros que, por ordem do coronel Jefferson, atacaram uma patrulha comandada pelo tenente Juvêncio Lemos. "Foi um tiroteio medonho, as balas passavam zunindo por minha cabeça e não sei como não fui atingido. Após 20 minutos de fogo ouviu-se cessar - uma trégua que partiu deles que, posteriormente eu soube, para retirar o sargento Argemiro", narra Osório no diário.
A única vítima do combate, como conta o coronel, foi o sargento do Exército Carlos Argemiro de Camargo - que batizou a turma de 1978 da Escola de Sargentos das Armas (EsSA) de Três Corações (MG), além de dar nome a ruas e escolas em todo o Estado do Paraná. Após sua morte, Camargo foi promovido ao posto de 1º Tenente e condecorado com a Medalha do Pacificador. O Inquérito Policial Militar (IPM) que resultou na condenação de Osório e outros 13 integrantes do movimento informa que o sargento foi atingido por quatro tiros - dois na coxa direita e dois no tórax. Mas reconhece que "não é possível atribuir a quem quer que seja a morte do sargento Camargo".
A única vítima do combate foi o sargento Carlos Argemiro de Camargo, que hoje dá nome a ruas e escolas em todo o Paraná
As rajadas de metralhadoras das tropas do Exército dispersaram o grupo de guerrilheiros. Osório acabou sendo preso horas depois, após passar por barreiras militares sem ser reconhecido, usando disfarce de colono - roupas velhas, sem dentadura, chapéu de palha. No caminho para Foz do Iguaçu, as primeiras humilhações: "Dois tenentes da companhia fizeram-me rolar como um barril, aplicando-me pontapés em todo o corpo aos gritos de filho da puta, assassino". Espetado "dos pés à cabeça" por um garfo pelo próprio capitão Dorival Sumiani, Osório foi exposto à tropa para que "os oito ou dez soldados que se achavam presentes escarrassem sobre mim aos gritos de filho da puta, comunista, assassino". Também foi obrigado, pelo coturno do capitão, a "beijar a terra que traíste". Em 48 horas, todo o grupo foi preso e levado ao Batalhão de Fronteira, em Foz do Iguaçu.
A viúva do coronel insurgente, Rosa Lopetegui de Alencar Osório, 86 anos, afirma que o marido estava irreconhecível quando o reencontrou. "Quando consegui vê-lo, quase um mês depois da prisão, não o reconheci. Estava magro, muito machucado, parecia que não ia passar daquela semana. Então passei a tranquilizá-lo, dizendo que nós iríamos tirá-lo dali, mesmo sabendo que a situação de todos era bastante difícil", relata a viúva, que vive em Montevidéu.
Cacalos Garrastazu
A viúva do coronel insurgente, Rosa Lopetegui de Alencar Osório, afirma que o marido estava irreconhecível quando o reencontrou na prisão
Uma fuga de cinema
Transferido em abril de 1966 para o 5º Regimento de Obuses, no bairro curitibano do Boqueirão, Osório planejou sua fuga da prisão ao longo de vários meses. Ao escapar, teve ajuda de militares e só 12 horas a fuga foi percebida pelas forças do regime. Após três anos na cadeia, depois de condenado a oito anos pela Justiça Militar, o coronel deixou o prédio do quartel pela porta da frente, fardado como um soldado, na madrugada de 5 de maio de 1968.
Naquele momento, as possibilidades de Osório pareciam bastante restritas: ou cumpriria a pena, com o risco de desaparecer nos porões da ditadura, ou tentaria a fuga, com desdobramentos imprevisíveis. Ciente dos riscos existentes para si e os demais envolvidos - entre eles um de seus filhos -, elaborou minuciosamente o plano para escapar. Os detalhes são narrados por Osório no diário por ele datilografado durante o exílio em Paris. O filho mais novo do coronel, Jefferson Lopetegui de Alencar Osório, que participou da empreitada, resume tudo numa frase: "Foi uma fuga fantástica, coisa de filme".
Cardim era o único preso político mantido nas dependências do quartel, que ocupava um imenso terreno cercado de bosques e plantações dez quilômetros ao sul da zona central de Curitiba. Nos primeiros anos de reclusão, esteve sob total vigilância, com direito a apenas uma hora de banho de sol por dia. Com o passar dos meses, ganhou fama de cordial e corajoso. A vigilância, no entanto, continuou tão rigorosa que inviabilizava qualquer ambição de fuga sem que muito planejamento e ajuda externa. "Foi então que me lembrei do major Joaquim Pires Cerveira", relata Cardim no diário. Segundo ele, o major era a única pessoa "de confiança e com coragem" para se engajar no plano. O filho Jefferson, ao lembrar do oficial que ajudou seu pai a fugir, emociona-se: "O major Cerveira era um homem de muita coragem", disse, com a voz embargada ao relembrar a operação.
Cerveira mandou recado dizendo que não tinha condições de tirá-lo do quartel naquele momento, mas estaria pronto para dar cobertura no lado de fora se o coronel conseguisse escapar sem violência. Sem planos concretos, a fuga só começou a ganhar contornos mais concretos em abril de 1968, quando Cardim conheceu o cabo Vítor Luiz Papandreu, que servia suas refeições. No diário, o relato da fuga é feito pelo próprio Papandreu, datilografado por Cardim com base em relato de próprio punho escrito pelo cabo durante o tempo que ficaram asilados no consulado mexicano no Rio, entre maio e agosto de 1968, aguardando salvo-conduto para o exílio. No relato, Papandreu conta que perguntou diretamente a Osório, na noite de 13 de abril, se nunca havia pensado em fugir e ofereceu ajuda.
Acervo Museu Hipólito da Costa/Correio do Povo
O coronel Jefferson Cardim Osório em trajes civis logo após ser preso pelo exército
Acervo Museu Hipólito da Costa/Correio do Povo
Acervo Museu Hipólito da Costa/Correio do Povo
Divulgação/5º Regimento de Obuses
Acervo pessoal/Família Osório
Acervo arquivo público/PR
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Ao longo dos 20 dias seguintes, tudo foi preparado e acertado com o grupo de Cerveira e a participação do filho de Osório, que tinha 16 anos à época. Papandreu teve ajuda de outro soldado, que não é identificado, responsável por guardar a porta do quarto-prisão do coronel. Às 2h20 da manhã, Osório e Papandreu entraram no Simca Chambord que os levaria até São Paulo, onde trocaram o veículo por um táxi e seguiram para o Rio. Só foram parados uma vez: um guarda da Polícia Rodoviária Federal queria alertar que a lanterna do carro estava queimada. Foram direto à Embaixada do Chile, mas era domingo e mandaram voltar no dia seguinte. Na embaixada mexicana, no bairro do Flamengo, o porteiro entendeu do que se tratava. "Ele foi logo dizendo 'já sei, é asilo, né?' e mandou meu pai e Vítor aguardarem dentro do Mercedes Benz do embaixador", conta o filho, Jefferson.
"Foi uma operação totalmente limpa, sem tiros. Tiraram o Cardim da cadeia, botaram no carro e foram embora", resumiu o jornalista e pesquisador paranaense Milton Ivan Heller.
O sargento infiltrado
O sargento Alberi Vieira dos Santos é a personagem mais controversa envolvida na trajetória da coluna guerrilheira de Três Passos. Passados 50 anos, seu nome é o único entre os 23 insurgentes que figura entre os 377 agentes do Estado apontados pela Comissão Nacional da Verdade como responsáveis por crimes da ditadura. Ao longo desse tempo, cresceram as evidências de que o sargento da Brigada Militar gaúcha teria passado a atuar como agente infiltrado pela ditadura militar em movimentos contrários ao governo golpista.
A Comissão Estadual da Verdade do Paraná (CEV-PR) investigou a atuação de Alberi no âmbito da Operação Juriti e obteve relatos e documentos que levantam suspeitas contundentes contra o ex-sargento a partir de sua prisão, no fim de março de 1965, até sua execução em 1979.
Acervo pessoal/Família Osório
O sargento Alberi Vieira dos Santos em encontro com Leonel Brizola, em Montevidéu
Acervo pessoal/Família Dorneles
Acervo pessoal/Família Osório
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Vera Karam de Chueiri, professora de direito constitucional da UFPR e integrante da CEV-PR, acredita que Alberi teve um início sincero na resistência. Os guerrilheiros "eram muito voluntariosos, mas assim como aconteceu a muitos outros, fosse por tortura ou outros motivos, o Alberi parece ter mudado de lado no meio do caminho", observa.
A participação do sargento em crimes cometidos pela ditadura está diretamente relacionada à emboscada que resultou na morte de uma célula da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) liderada pelo ex-sargento Onofre Pires. O grupo foi dizimado em 1974 em uma cilada na cidade paranaense de Medianeira, no episódio conhecido como a chacina da Estrada do Colono e que guarda semelhanças com o episódio de Três Passos.
Na Argentina, Alberi teria convencido Onofre Pinto de que havia estrutura naquele momento para a retomada da resistência à ditadura e organizou a entrada dos guerrilheiros por Santo Antônio do Sudoeste (PR), trecho de fronteira seca entre os dois países. Em 12 de julho de 1974, um dia antes da emboscada, Alberi abrigou os guerrilheiros no sítio de um parente. No dia seguinte, a célula do VPR conduzida por Alberi e um motorista identificado pelo nome fictício de Otávio Camargo foi interceptada e cinco de seus seis integrantes foram sumariamente executados. Alberi foi poupado, enquanto Onofre Pinto foi mantido no sítio para ser entregue posteriormente aos militares. Levado a Foz do Iguaçu no dia seguinte, ele recusou-se a colaborar e acabou executado. Os corpos dos guerrilheiros jamais foram localizados.
"Alberi apanhou muito, mas muito mesmo, mas ele estava muito à vontade nos interrogatórios"
A presença de Alberi no grupo do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, constante desde o início da ação até seu desfecho no oeste do Paraná, era percebida como uma das lideranças do levante. Preso mais de 24 horas depois de a coluna ter sido desbaratada, Alberi foi separado dos demais. Torturado, entregou seus companheiros. O sargento Firmo Chaves, também um dos líderes de Três Passos, mostra desconforto ao falar do ex-companheiro: "Ele apanhou muito, mas muito mesmo, mas ele estava muito à vontade nos interrogatórios", afirma.
O procurador de justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, atual coordenador da CEV-PR, acredita que começou ali a colaboração de Alberi com o regime. Mas não há documentos que confirmem a suposição.
Alberi foi encontrado morto em fevereiro de 1979. Há suspeitas de que sua morte tenha derivado de um acerto de contas por atividades ilícitas. A advogada Ivete Caribé da Rocha, que integra a CEV-PR, considera mais provável a hipótese de queima de arquivo, como aconteceu com diversos outros agentes infiltrados.